6/17/2010

CLÍNICAS-PARAÍSO


clínicas. ao meu redor emergiam todas as clínicas do mundo. ruído surdo de motores. passos apressados misturados com a chuva fina. prédios em coma. cemitério curvado mudo de concreto sobre mortos. cores apagadas. tudo branco e preto. tudo cinza, um filme antigo rodando nas minhas frágeis pupilas. avenida de braços mortais, braços de flores, soluços e morfina. bancas floridas no meio do ensurdecedor braço de motores e luzes entre as clínicas. flores de enterrar. rosas que acariciavam roupas mortas. espinhos moribundos. gerânios abraçariam seios frios. orquídeas defuntas. trinta mil violetas e nenhuma lágrima.
andei por aquelas bancas. colhi todas as cores nas mãos. pétalas tonalizavam meus bolsos enquanto a chuva fina fazia chorar centenas de túmulos. enchi os bolsos. desci a escada que dava pro iluminado túnel retalhando meu corpo magro. a silenciosa estação abrigava poucas pessoas. a maioria delas mortas. algumas escaparam dos túmulos e liam as propagandas frágeis do inverno. das poucas pessoas vivas, uma interessante. bela. o rosto parecia desprender-se por todo corpo como se modigliani tivesse dado vida àquilo. roupas perfumadas e botas úmidas. cabelos em cana. olhos fartos de vazio, pingos.
enquanto o trem não vinha, ouvíamos música. a luz confusa da estação misturava música com batimentos cardíacos em emergente descontrole. aqueles olhos, como persianas antigas e corroídas, procuravam explicar algo à sua dona. talvez quisessem mostrar a faixa amarela, tonta, imóvel ali no chão. ou apenas pairar na estação e tomar lugar dos insetos barrados lá na escada. a música fazia meus cotovelos sentirem-se parte do corpo. assim, sade deitava-se nos ouvidos. formigavam meus ombros e tinha saudade da chuva fina e mal querida. um só olhar. as persianas rangiam, estalavam soltando a tinta gasta, crua. aqueles olhos demasiados. a música foi dando espaço pro ruído. súbito. muitos decibéis espalhavam o perfume pela estação. entramos no carinhoso trem.
um só olhar bastara. perfeitamente suspenso, aquele instante justificava-se e assim tornara-se findo. todos os corações deixados nas clínicas perseguiam agora o imenso trem. entravam nos meus bolsos e nas perfumadas pétalas se aninhavam. contentes. aquecidos. pulsando debaixo da terra em alta velocidade. sentada, lia algo com desinteresse fatal pelos vivos. permaneci fixo em seus prendedores de cabelo. estes sumiram e deram lugar a dois reflexos azuis. lá neles, via apenas um homem. bolsos exalando perfumes. e o intenso azul desapareceu tão veloz quanto o trem que carregava o homem, as pétalas, a mulher e todos os corações fugitivos.
pousei minhas mãos nos bolsos. procurei. encontrei a pétala vermelha manchada por todos aqueles que me perseguiam. os cabelos, agora soltos, viravam as páginas e por cima deles vi voar uma pétala que tocou no algo lido e interrompeu todo o desinteresse e devolveu todas as cores ao filme que assistia. um sorriso ingênuo e perturbado correu, penetrou pela face. os olhos baixos buscando alguma palavra. o trem parava. andei até a porta. estátua pensativa sentada no metrô. o trem partia. um dedo pousava no lábio inferior enquanto todas as violetas contidas numa lágrima azul despencavam sobre a pétala. um só olhar. era o fim da linha. os bolsos leves. olhei pros trilhos. muitos corações tinham se atirado. paraíso.

Nenhum comentário:

Postar um comentário